sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

RIO de SANGUE Parte II: O processo de produção

Essa movimentação atraiu pra cá toda tipo de gente, aventureiros, intelectuais, religiosos, cientistas, artistas, bandoleiros , fugitivos da lei, aristocratas...

Muitos de passagem deixaram seus relatos, escritos, imagens desenhadas, entre eles o desenhista francês Jean Batist Debret que imortalizou os dois tipos de abates, ficando clara a superioridade tecnológica do núcleo charqueador pelotense.
O inglês Nicolau Dreys na obra Notícia Descritiva da Província do Rio Grande de São Pedro de 1839 detalha esse processo de forma minuciosa.

"O modo de matar gado, primeira operação da charqueada, deve naturalmente influir sobre o asseio do estabelecimento,e infelizmente esse modo não é uniforme em todas as partes, nem igualmente aperfeiçoado; difere segundo as províncias e até, em certos lugares, segundo as charqueadas; na campanha de Montevidéu, e mesmo nas charqueadas limítrofes da Província do Rio Grande, os peões montam a cavalo; um deles estimula o animal recolhido num curral aberto agitando ante seus olhos um ponche colorado, e quando o novilho exasperado lança-se afinal sobre o agressor e entra a persegui-lo, outro peão armado de uma lança comprida cujo ferro tem feitio de meia lua, corre atrás do boi e corta-lhe o jarrete, abandonando-o logo que cai para ir atrás de outro boi preliminarmente excitado pelos mesmos meios; entretanto, um camarada ou u negro toma conta do animal e sangra-o; esse método não é sem perigo, mas por isso mesmo agrada aos hábitos aventurosos dos gaúchos [...] Porem homens tão esclarecidos com são em geral os charqueadores do Rio Grande* não podiam deixar de chamar a indústria em auxílio de seus trabalhos, tanto para economizarem os braços como para minorarem, quanto possível , não só o perigo como também as repugnâncias inseparáveis do ato e da conseqüência da matança; hoje em dia, nas charqueadas as mais bem organizadas, matam-se os bois por um método mais expedito, mais seguro e menos cruel. O gado fechado no curral é impelido na direção de dois corredores, separados um do outro por uma espécie de esplanada levantada a sete ou oito palmos do solo; um peão em cima dela, lança no boi um laço cuja extremidade esta atada , fora do recinto, num cabrestante posto em movimento por um ferralho (trinqueta), manejada por dois negros: quando o boi, puxado pelo laço, chega a encontrar-se com a cerca contra a qual a cabeça se acha comprimida, uma pessoa, que o espera exteriormente, introduz-lhe a ponta da faca nas primeiras clavículas cerebrais, donde resulta ficar espontaneamente privado de movimento; nesse estado, um guindaste, rodando sobre o eixo, eleva o animal asfixiado para fora do curral por cima do cercado e o transporta para debaixo do telheiro, sobre um lajedo disposto em segmento de esfera, onde se sangra, sem que graças a disposição bem entendida do lugar, a operação deixe depois vestígios nenhum. Retalhado o boi, levam-se as mantas (assim se chama as partes musculares) para o salgueiro, e não há nada mais fresco e menos enojoso que o salgadeiro: vasto alpendre guarnecido de todos os lados, até mesmo no chão, de folhas de butiá que escondem o hediondo da morte debaixo de um véu de verdura e não revela ao olfato nenhum átomo de mefitismo. Depois de salgada, a carne a carne empilha-se ali mesmo pra se lhe extrair a umidade, a qual corre com sal derretido e supérfluo num reservatório inferior, onde se lança subseqüentemente as costelas, as línguas e outras partes que se quer conservar na salmoura. Esgotada que seja, a carne é levada do salgadeiro para os varais: assim é denominada uma grande extensão de terreno plantado de espeques arruados, de quatro a cinco palmos de altura,atravessados por varas compridas em que se suspendem as mantas para secarem pela ação do sol e dos ventos; quando se receia alguma chuva repentina, o toque de um sino chama, para os varais, todos os negros da charqueada, e coisa curiosa é ver como num instante a carne amontoada por porções nos mesmos varais se acha escondida debaixo dos couros que não permitem o menor acesso às águas do céu. Estando a carne perfeitamente seca, é disposta em forma de grandes cubos oblongos assentado num chão artificial, levantado de três a quatro palmos, para dar passagem ao ar; nesse estado cobrem-se ainda de couros para esperar o embarque. [...] È uma ocupação regular distribuída segundo as forças de cada negro, no desempenho da qual o negro entra com tanto mais vontade que não se pode dissimular que alguma coisa tem de conforme o trabalho com suas inclinações.
Gravura Danubio Gonçalves
Na estação da matança, isto é, de novembro ate maio, o trabalho das charqueadas principia ordinariamente à meia-noite, mas acaba ao meio-dia, e tão pouco cansados ficam os negros que não é raridade vê-los consagrar a seus batuques as horas de repouso que decorrem desde o fim do dia até o instante da noite em que a voz do capataz se faz ouvir." [ps.202-205]
Gravura Caribé

Essa ordem tão surpreendentemente instalada, exigia tecnologia, conhecimento, preparo, treinamento. Seria um absurdo pensar que um ritual religioso milenar praticado pelos africanos, estava na base desta revolução tecnológica? Seria um absurdo pensar que a presença de um povo que a milhares de anos realiza matanças sagradas observando primícias, como não pisotear sangue, despacha-lo em água corrente, não destratar viceras, colocar os animais em quarentena antes do sacrifício, matar sem que o animal entre em sofrimento,matar sempre de hora grande a hora grande, (ou seja da meia-noite ao meio-dia), consagrar os sacrifícios aos Deuses no tambor, estivesse por trás disso? Como se explica que um processo de matança primitivo com características de caçada indígena, repentinamente se transformasse num processo industrial tão bem organizado, fazendo o núcleo charqueador pelotense despontar como a 5ª economia do pais. Jose Pinto Martins que leva a fama de ter fundado esse núcleo charqueador com todas as suas evoluções tecnológicas, vem do Ceara na companhia de negros, viveu , constituiu família e como mostra seu testamento, todos aqueles que lhe são caras ao afeto eram africanos. Isso lhe rendeu inúmeros ataques; "hedionda mistura de raças que gera degradação universal" com o acuso publicamente Gonçalves Chaves. Mesmo assim fez de seu filho João que teve com a negra "crioula forra" Francisca se principal herdeiro, sem esquecer de deixar testado os departamentos importantes de sua charqueada para os respectivos mestres que o instalaram. Africanos e portugueses uma mistura de técnicas e conhecimentos que criaram um verdadeiro milagre econômico que assombrou o mundo.
Mas o medo, a arrogância e a ganância fizeram deste relacionamento uma pagina difícil de ser lembrada...
"Uma charqueada bem administrada é uma penitenciaria"
Nicolau Dreys

RIO de SANGUE Parte III: Revolução

Os negócios prosperarão, ao cabo de algumas décadas eram mais de trinta charqueadas movimentando somas consideráveis. Formando uma sólida economia que fazia a classe dos charqueadores homens poderosos. Sentindo-se desfavorecidos pelas leis federais começam a ter idéias políticas dissidentes. Impostos considerados excessivos criavam revolta, as negociações com o governo imperial eram insatisfatórias, o estado de tensão cresceu até o rompimento e declaração de guerra em 20 de setembro de 1835.
Para declarar guerra ao império, os revoltosos formaram um exercito juntando tropas de generais do exercito que aderiram a causa, formam assim o "exercito farroupilha", liderados pelo Gen. Bento Gonçalves, lutam por um país independente.
Entre esses generais está Antônio de Souza Netto abolicionista convicto, não só coloca a libertação dos africanos como um dos "ideais farroupilha", como sugeriu que esses lutassem ao seu lado. A sugestão não é aceita no primeiro momento, mas Netto deixa a cargo do Cel. Teixeira Nunes a formação do 1° batalhão de Lanceiros Negros, caso a necessidade mudasse a idéia dos demais generais. E foi no dia 4 de outubro de 1836 depois da "Derrota de Fanfa" em que em que o exercito farroupilha teve varias baixas incluindo a prisão de Bento Gonçalves, que os Lanceiros Negros entraram definitivamente no combate estendendo a guerra por mais nove anos.
A participação decisiva dos Lanceiros como ressalta Garibaldi em sua biografia escrita por Alexandre Dumas fala em "soldados de uma disciplina espartana, que com seus rostos de azeviche e coragem inquebrantável, punham verdadeiro terror ao inimigo".
Lutavam por liberdade, não por divisas e impostos, e no dia 14 novembro de 1844 foram traídos no mais lamentável episódio desta guerra conhecido como "O Massacre de Porongos".
1100 guerreiros negros foram desarmados e deixados no Cerro dos Porôngos para uma emboscada previamente acertada com o Exercito Imperial. Conforme o combinado a chacina poupou apenas os brancos e índios, pois essa gente ainda poderia ser útil.
Livres da questão abolicionista finalmente os "Farrapos" poderam assinar a PAZ chegado a um acordo econômico conveniente.



"Eram desgraçados, sim, eram pobres, eram maltrapilhos, aqueles guerreiros que, para não morrer de fome, contentavam-se com um bocado de carne crua; acampavam e dormiam ao relento, com a face voltada para as estrelas; não tinham dinheiro, nem uniforme, e não podiam renovar as botas e os 'ponches' que o pó da estrada, as balas, as cutiladas, as chuvas estraçalhavam e apodreciam; [...] prezavam seu nome de Farrapos, e tinham orgulho de sua pobreza: [...] eram mais ricos assim, possuindo apenas o seu cavalo, a sua garrucha, a sua lança e a sua bravura [...]."
Olavo Bilac


” Este corpo de lanceiros na sua maioria de negros libertos pela república, e escolhidos entre os melhores domadores de cavalos da província, tinha unicamente os oficiais superiores brancos...(...)...As suas lanças que eram maiores do que de ordinário, os seus rostos pretos como azeviche, os seus robustos membros e a sua perfeita disciplina, tornava-os o terror dos inimigos”
GARIBALDI

RIO de SANGUE Parte IV: Opulência Abolição Queda

Assim à sombra das charqueadas, as margens de um rio de sangue cresceu a cidade de Pelotas...
Com o termino da guerra os negócios prosperaram, o charque criava em torno de si um mundo de luxo e riqueza.
Da sangrenta lida brotavam belos casarões, os primeiros charqueadores podiam agora financiar educação, polidez e fidalguia aos seus descendentes...

Os navios não param, cargas e descargas levam o charque e trazem mercadorias... Os navios vindos da França são os mais esperados...

Mobiliário, porcelanas, cristais, os mais belos trajes na ultima moda da corte, revistas, partituras, obras de arte, os filhos da terra que completaram seus estudos em Paris.
Nobres e abastados os charqueadores se transformaram em "Barões", a fama do "Refinamento Pelotense" correu os salões até chegar na corte, no apogeu do charque recebe a visita da família Imperial.... Recebe da proria Isabel o titulo de Princesa do Sul...
O milagre ecomomico parecia tão solido que não havia com que se preocupar.
As senzalas continuavam cheias de um povo que conseguia dar conta daquela lida do charque e manter impecáveis os salões...

Mas veio abolição... e veio sem aviso prévio...
sem fundo de garantia... sem ter para onde ir...
Mais alguns anos e o Banco fundado com o dinheiro do charque quebrou...Boa parte das charqueadas foram demolidas, como se delas partisse uma maldição que gerou a queda...
Do rolo que o tempo, a necessidade, ambição e a cobiça fizeram saímos nós, sem tirar nem por...
Quais são as harmonias possíveis para uma historia tão sangrenta? Da habilidade em responder essa pergunta, depende nosso futuro. Referencia cultural ou convulsão social?


Se um viajante voltar daqui a um século vera nas paredes a mesma alvura, é matéria que o tempo não rói...

Nicolaus Dreys